A noite da Bela e da Fera

As letras iluminadas anunciavam ser um parque de diversões. Não um parque qualquer, com brinquedos que giram e pula-pulas remendados. Pela primeira vez na cidade seria apresentada a mulher gorila. Um cartaz, colocado na traseira do caminhão mambembe, mostrava as ilustrações das duas faces da bela-fera, enquanto no alto-falante uma voz sombria anunciava o horário do espetáculo. Todos vieram às calçadas para ver a horripilante novidade. As crianças choravam nas pernas dos pais, algumas implorando para ir ao parque, outras para nem chegar perto. Os namorados entrelaçavam os braços e as mãos porque o amor protege de qualquer maldição. As carolas escondiam, por trás de rezas mal pronunciadas, a vontade de conhecer a atração vinda dos fundos do inferno. As solteironas suspiravam a falta de companhia, boa ou má, enquanto os bêbados mantinham-se absortos, crentes que era mais uma alucinação causada pela cachaça.

Para mim, foi uma surpresa o convite da minha prima mais velha que, do alto da adolescência, achava absurdo ter como companhia uma pirralha como eu.  Recomendações de cuidado como não soltar da minha mão, voltar para casa até nove da noite, dinheiro para o sorvete e lá fomos nós ver a temida Monga. A temperatura quente, comum na pequena cidade onde eu passava férias, parecia um convite aos besouros e aleluias que tomavam conta das fracas lâmpadas da rua deixando o trajeto ainda mais escuro. Meus passos eram vacilantes, não tinha tanta certeza se queria conhecer tal monstro. Mas minha prima, empurrava-me ladeira abaixo, segurando o meu braço como se estivesse me levando para a diretoria da escola depois de alguma travessura. Seu olhar procurava a cada esquina algo que só entendi depois. Um rapaz cheio de espinhas na cara, jeitão tímido e que suava a ponto de deixar na camiseta as marcas de pizzas debaixo dos braços aproximou-se. “Bah”, pensei. Aquilo já fazia parte do espetáculo de horror? Apesar de não aprovar o gosto da minha prima, fiquei feliz em ver de novo seu sorriso aberto como aqueles que ela dava nas férias passadas. Incrível como ela tinha mudado em apenas um ano! Era agora uma menina chata preocupada em passar batom e ler fotonovela.

Já no parque, pessoas, besouros e aleluias faziam fila em frente à barraca da mulher gorila. Qualquer intenção de desistência por minha parte colocaria água no fogo que se estabelecia entre os dois jovens que fingiam cuidar de mim. A rotunda feita de pano preto barato foi aberta e o público posicionou-se atrás de uma corda que delimitava o espaço da platéia. “Parece mais um barbante”, constatei. “Isso não vai segurar a Monga”, me apavorei. Quando a mulher, ainda em sua forma de bela, apareceu, meus olhos não conseguiam se desviar daquela corda fraca e fina. A minha única vontade era ir embora. Aos poucos, a pele branca da artista transformou-se em montes de pelos. Seu rosto tão delicado era gradualmente deformado.

As pessoas começaram a gritar. A mão, que antes segurava a minha, agora procurava a do panaca espinhento. Estava sozinha! Já totalmente gorila, Monga começou a mostrar sua força, sua raiva e veio para cima do público. A corda não ia resistir. Aterrorizada senti as pernas perderem a força, mal respirava e o monstro aproximava-se, para minha perdição, mais e mais. Por que ela não se transformara num macaquinho, num mico leão-dourado, ou mesmo em bichinho de pelúcia? Tinha quer ser em gorila horrendo, raivoso e antipático? Quando achei que nada mais valia pensar, que minha curta vida tinha chegado ao fim, que nem tinha dito adeus aos meus pais (como eles ficariam com a notícia da filha morta por uma monga?), que me arrependia profundamente de ter deixado para comprar o sorvete depois do espetáculo, os pelos do monstrengo foram sumindo e logo a moça bonita recebia os aplausos dos pagantes.

Eu também batia palmas, muitas! Agradecia por ter sobrevivido, sentia o sangue quente correr pelo meu corpo, as pernas voltarem ao normal. O pesadelo, enfim, terminara. Olhei para o lado e minha prima mais que depressa me pegou pela mão e corremos para casa. Não entendi durante muito tempo o porquê de ela ter saído tão rápido. Estaria assustada com o espetáculo? Mas havia também alegria, o que lhe fez até me abraçar como antigamente antes de dormir. Anos depois, quando eu já podia compreender, ela me contou que ali, entre pelos e sustos da monga, ela tinha dado o seu primeiro beijo. Realmente aquela noite foi da bela e da fera.

Renata Canales

É jornalista, graduada em Comunicação Social pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com habilitação em Rádio e Televisão, e habilitação em jornalismo pela Universidade de Ribeirão Preto. Além de ser Mestre em Filosofia da Educação pela Universidade Federal de São Carlos.

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