O outro: anjo ou demônio?
Quantas vezes imaginamos que levaríamos uma vida melhor sem a chatice das pessoas, sem os seus discursos contrapondo-se ao nosso? Então vamos idealizar o cotidiano individualizado, sem a resposta de outrem para as nossas atitudes, sem olharem a nos observar, admirar, criticar. Como seria enfrentar essa realidade?
É exatamente sobre isso que trata a primeira parte do filme Passageiros, de Morten Tyldum. Durante a viagem pelo espaço que levará cinco mil proponentes a viverem num novo planeta, um rapaz é o único a acordar da hibernação 90 anos antes da aeronave atingir seu destino. Sozinho dentro do local, encontra diversões variadas como pista de dança, quadra de basquete, piscina com direito à paisagem estelar. Comida e bebidas de ótima qualidade também não faltam. Um paraíso em comodidade e mordomias para os passageiros passarem os últimos quatro meses da viagem. Tudo só para ele. E é aqui que o filme tem uma das melhores pegadas porque não há as dificuldades de sobrevivência vividas pela personagem de Tom Hanks em Náufrago ou a de Matt Damon em Perdido em Marte.
Por que desenvolver um projeto de trabalho se ninguém irá se beneficiar dele, ou mesmo cumprimentá-lo pelo feito? Por que fazer a barba, seguir regras de higiene, vestir-se adequadamente se não há a resposta do outro?
O problema, passados os primeiros dias, é a solidão! Não há uma pessoa para conversar, para dividir sentimentos, para amar e nem a possibilidade de restaurar alguma ordem nesta bagunça antes que os outros acordem.
Ah, o outro! O filósofo russo Bakhtin afirmou que somos complementados pelas pessoas que nos rodeiam, que interagem conosco, que é apenas no dialogismo que conseguimos inteirar o nosso discurso, o nosso eu. Já o pensamento do francês Sartre era que os outros são os responsáveis pela nossa falta de liberdade de escolhas, proporcionando-nos o inferno nas quatro paredes de nossa vida.

Passageiros é ficção científica, mas aborda o mais trivial que temos na vida que é a relação com as pessoas. O protagonista tem botões para apertar, filmes e música para se divertir, até robôs que lhe servem e fazem a limpeza do lugar. Mas a falta de outra vida lhe é uma sentença de morte. Por que desenvolver um projeto de trabalho se ninguém irá se beneficiar dele, ou mesmo cumprimentá-lo pelo feito? Por que fazer a barba, seguir regras de higiene, vestir-se adequadamente se não há a resposta do outro?
O filme aponta para nossa pequenez, para falta de sentido sem alguém. Sem o outro, somos quebrados, figuras sombrias perdidas, sem vida. Não é mais a questão do discurso mentiroso de se bastar, de achar que o grande barato da vida é só você. O outro nos impulsiona a levantar de manhã, a enfrentar as horas de trabalho, a nos cuidar, a voltarmos para a cama sabendo que fazemos a diferença no mundo porque temos para quem propiciar essa diferença.
Essa é a primeira parte do filme, mas há muito mais para refletir na sequência que precisa ser vista no cinema.
Confira o trailer do filme: