O pão nosso de cada dia

Sabor de infância, sabor de dia frio daqueles bons para se enrolar em coberta e ver tv. Na cozinha, a massa criança do pão crescia lenta, também aconchegada em panos sobre a mesa. De quando em quando, eu corria para ver a pequena bola branca feita de farinha do mesmo saco emergida num copo d’água. Era só ela subir e pronto! Podia-se levantar a toalha e admirar o milagre da massa ter se tornado gorda e grande. Número de mágica aos olhos de quem nem sabia o que era fermento e, portanto, olhava admirada para a mãe feiticeira que ainda conseguia bronzear aquela brancura no compartimento quente do fogão.

O cheiro começava sutil e penetrava suave por todos os cômodos a fazer pai e irmãos pararem seus afazeres e se deliciarem com o momento que viria. Impaciente, eu dava voltas intermináveis pela casa, mas o relógio arrastava-se lento e, apesar de achar que horas já tinham se passado, na verdade poucos minutos ainda insuficientes marcavam a minha frustração. Ah, mas valia a pena aquela espera! Um espetáculo visual e cheiroso, digno de aplausos, era apresentado sobre a mesa onde também estava abrigada a manteiga que se derreteria toda em contato com o pão robusto e quente. Sensualidade total! Sem dúvida uma das minhas lembranças mais gostosas, que volta sempre nessa época de tempinho frio, acompanhada de uma saudade danada da mãe artista e de seu show saboroso.

Essa semana, fui convidada para tomar café da tarde na casa de uma amiga que, felizmente, ainda tem a mãe cheia de saúde e disposição. Assim que entrei, minha infância retornou sem precisar de fotografias para ser descrita. O cheiro determinava a volta ao tempo. A mesa, cuidadosamente arrumada, exibia entre pratos e xícaras o astro principal. Lá estava ele: o pão caseiro! O formato era o mesmo daqueles que foram motivos de alegria e ansiedade na minha época de menina. Quentinho, ele esperava ser saboreado devagar como tudo que é bom e deve ser apreciado com calma e atenção. Alguém seria maluco de ir ao Louvre e contemplar apenas por segundos a Monalisa, de Da Vinci? Ir a Roma e apenas passar os olhos em Moisés, de Michelangelo? Aquele pão também era obra de arte e merecia toda a minha dedicação. Ruídos como “hum, hum”, “bom demais”, e mais “hum, hum, hum”, deixavam claro o meu prazer em comer o pão macio. Como se não bastasse, ainda se expunham elegantes e charmosos pães de queijo, broinhas de milho e pão recheado de goiaba. Tudo feito em casa!

Os dois filhos da minha amiga, um de seis e a outra de quatro anos, sentaram-se à mesa e depois de conferirem o que havia foram logo gritando: “manhêê, ainda tem pastelzinho e coxinha?”. Indignada ainda tentei argumentar que a avó tinha preparado tudo com carinho e que os pães eram bem mais gostosos que os salgadinhos. Contei-lhes da minha infância, discursei sobre o quanto é difícil encontrar, hoje em dia, quem ainda faça essas maravilhas em casa, e que certamente eles são crianças privilegiadas em ter aquele lanche especial. Os dois ficaram me olhando como se reconsiderassem a escolha. Passaram novamente os olhos sobre os pães e broinhas, para depois cruzarem o olhar um com o outro e logo já repetiam alto: “a gente quer coxinha!!”.

E sem culpa, saborearam os salgadinhos de padaria enquanto eu, perdida entre lembranças e saudades, cortava mais uma fatia, prestigiando o protagonista da tarde e pensando como pediria à minha amiga para levar mais um pedaço para casa.

Renata Canales

É jornalista, graduada em Comunicação Social pela Escola de Comunicações e Artes da USP, com habilitação em Rádio e Televisão, e habilitação em jornalismo pela Universidade de Ribeirão Preto. Além de ser Mestre em Filosofia da Educação pela Universidade Federal de São Carlos.

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