A essência do perdão

Perdão. É que eu tenho visto nas matérias sobre a tragédia de Goiás, em que um adolescente atirou nos colegas na sala de aula. Morreram dois estudantes e quatro ficaram feridos, uma adolescente em estado grave. Impossível calcular a dor dos pais dos que morreram e de quem matou. Impossível entender o que levou um menino de 14 anos a fazer o que fez, mesmo com a motivação citada por ele: o bullying sofrido na escola. Situações como essas deixam a todos sem fala, e entre perdas e danos, o que sobra é o sofrimento.

O pai que perdeu um filho declarou perdão; um dos feridos disse que perdoa, e a mãe do atirador pediu que ninguém julgasse seu filho pelas notícias que circulam. Então, me vem à mente o que significa o perdão. Apenas uma palavra? Ou, conseguindo perdoar, a dor diminui? Pensando nisso, lembrei-me do conto Lenda do escritor argentino Jorge Luís Borges, do livro Elogio da Sombra:

Abel e Caim encontraram-se depois da morte de Abel. Caminhavam pelo deserto e reconheceram-se de longe, porque os dois eram muito altos. Os irmãos sentaram-se na terra, acenderam um fogo e comeram. Guardavam silêncio, à maneira das pessoas cansadas quando declina o dia. No céu, assomava uma estrela que ainda não tinha recebido seu nome. À luz das chamas, Caim percebeu na testa de Abel a marca da pedra e deixou cair o pão que estava prestes a levar à boca. E pediu que lhe fosse perdoado seu crime.

– Tu me mataste ou eu te matei? – Abel respondeu.  – Já não me lembro mais; aqui estamos juntos como antes.

-Agora sei que me perdoaste de verdade – disse Caim- porque esquecer é perdoar. Procurarei também esquecer.

– É assim mesmo – Abel falou devagar – Enquanto dura o remorso, dura a culpa.”

O que me parece é que talvez Borges quisesse dizer com essa parábola que a essência do perdão pode estar no esquecimento. Mas, também, que pedir perdão é uma virtude. Dois gestos difíceis.

No caso das tragédias, das perdas dessa natureza, talvez o esquecimento seja quase impossível, mas como a vida não anda para trás, todas essas vítimas, precisam encontrar uma forma de prosseguir, um alento, um alívio para o coração. No entanto, acredito que o perdão mais difícil de conseguir será o de uma das vítimas para si mesmo: o atirador. Ele terá a vida toda para conviver com a lembrança daqueles poucos minutos em que transformou a própria vida e de tantos outros em algo difícil de esquecer.

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

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