Nas fímbrias da loucura – Parte 1

Diziam que Sebastião era louco. Sei não. Acho que estavam todos enganados. Digamos que ele fosse excêntrico, pois um homem louco não dá um livro maravilhoso de presente de aniversário a uma menina de oito anos, o que a fez apaixonar-se pela leitura. Em casa, a menina nunca vira um livro sequer. Todos se ocupavam de trabalhar para o sustento básico. A menina sou eu.

Sebastião criava coelhos no quintal enorme de sua casa. E também galinhas. Cultivava lindos canteiros de flores e de verduras. Quando a produção era generosa, o louco saía com uma cesta de vime cheia de pés de alface, cenouras, tomates e ervas, distribuindo de casa em casa na vizinhança. Todos aceitavam, mas sem abrir totalmente o portão. Acho que ele nem percebia o temor dos vizinhos. Para ele, o mundo girava em outra rotação e sua mente habitava outras esferas.

Está certo, ele fazia algumas coisas estranhas como falar sozinho, mas isso eu também faço. Era fechado, meio sisudo, de poucos amigos. Corriam histórias arrepiantes sobre a vida de Sebastião: que já matara um homem, roubara um banco e degolava galinhas quando ficava nervoso.

Mas eu não acreditava em nada, principalmente quando folheava o livro cheio de figuras que ele me deu. E foi assim que tomei amor pelo cheiro dos livros e por aquelas letrinhas misteriosas. As páginas brancas e sedosas deslizavam pelos meus dedos, ou meus dedos deslizavam por elas, as figuras meio estranhas e aquelas letras me convidando a forçar meu parco abecedário de criança que não fez pré-escola.

Guardava o tesouro bem guardado, mas ele foi se perdendo em caixas, gavetas e sacolas, ficando pelos caminhos nas incontáveis mudanças de casa, a que meus pais nos arrastavam de tempos em tempos.

Talvez eu nunca tivesse conhecido e amado os livros não fosse aquele chamado Bertoldo, Bertoldinho e Cacasseno, de Giulio Cesare Croce, hoje eu sei, do folclore italiano. Não teria jamais viajado no talento de Garcia Marques, conhecido as ruas de Macondo, os arredores das cidades europeias, a tirania dos reis, me encantado com as parábolas de Jorge Luís Borges, me emocionado com Walt Whitman e Adélia Prado, e aprendido a conhecer melhor as pessoas, a humanidade e outras culturas, devorando Yukio Mishima, Pearl Buck, Marquerite Youcenar e tantos outros que não dá para desfiar aqui.

Sebastião me apresentou ao mundo: o louco me apresentou a vida em seus diversos modos de ser e de amar.

É verdade que a figura de Sebastião assustava um pouco. Às vezes, saía às ruas com roupas velhas, quase maltrapilhas. Caminhava meio corcovo e divagava. Nunca pude ver o interior de sua casa, mas imagino livros espalhados pela sala, quadros de pintores malditos e flores. Flores, sim, disso quase tenho certeza porque conhecia seu jardim bem cuidado de cravos, margaridas, rosas e girassóis.

Visto com receio por muitas pessoas, ao mesmo tempo a figura de Sebastião fazia bem a todos, pois rendia assunto para alimentar as conversas vazias das mulheres que juntavam as cadeiras na calçada nos fins de tarde tediosas.

Ele dizia ser confeiteiro, seus filhos, crianças como eu, me contavam com orgulho, já trabalhara em uma grande e elegante confeitaria do Rio de Janeiro e até ganhara uma viagem a Paris para se aperfeiçoar em uma escola de gastronomia famosa de lá. Eu não sabia onde ficava Paris, mas imaginava ruas largas, flores e vitrines cheias de doces.

O que ele fazia, perguntava eu? Profitroles, bolo Saint Honorée, diziam os filhos. Descrevia com tantos detalhes que eu até sonhava com os doces.

Ele era mesmo uma pessoa surpreendente. E uma dessas surpresas foi a festa junina e o convite aos vizinhos que torciam o nariz para ele. Eu sabia que seria convidada. Afinal, me deu um livro tão lindo de presente! Penso que ele gostava de mim. Um dia me disse, passando rapidamente ao meu lado quando eu brincava na calçada: – Você vai escrever livros.

(Continua na próxima semana)

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

Deixe uma resposta