Nas fímbrias da loucura – Parte Final

A festa não era bem junina, creio. Pode ser que não tenha fixado todas as lembranças dessa noite, mas uma delas ficou indelével, pois mexeu com outros sentidos meus: o olfato e o paladar. E isso é difícil esquecer: o aroma que vinha da cozinha espalhava-se pelo quintal enfeitado de balões e pequenas trilhas que levavam a um lago cercado de flores e lâmpadas coloridas, onde havia uma mesa cheia de doces e pirulitos gigantes.

Que cheiro bom era aquele que fazia a boca salivar? Frango assado? Carne de porco? Churrasco? Difícil identificar. Se naquela época eu não conhecia os tipos de ervas, hoje retrocedo no tempo e refaço o caminho. Talvez a fantasia tenha se solidificado em minha imaginação, mas tenho quase certeza que posso identificar os aromas do alecrim, do orégano fresco, cravo, pimenta, mostarda e tomilho.

Então, já bem tarde, quando os convidados murmuravam e ensaiavam despedidas, cansados de esperar a iguaria, Sebastião serviu o jantar.

Espalhou panelas e louças sobre uma grande mesa no quintal e declarou aberta a comilança: arroz branquinho e fumegante, batatas assadas e a iguaria servida em uma enorme panela de barro. Era uma carne tenra em pedaços pequenos, envoltos em um molho rosado. Como descrever o sabor daquela carne e daquele molho espesso e aveludado? Não consigo. Mas sei que aqueles aromas que se solidificaram e despertaram meu gosto, paixão até, pela culinária que eu já andava sondando pelos cantos da cozinha quando minha mãe fazia ovos empanados.

Mas dias depois fiquei triste. Os filhos me disseram que era carne de coelho. Imaginei os bichinhos tão lindos e peludos sendo degolados e quis vomitar o que havia comido, mas já haviam se passado dias, o coelho não estava mais no meu estômago. Perdoei Sebastião em minha santa inocência, mas sempre fiquei atenta e nunca mais comi carne de coelho.

Bem, quase um mês depois, vi o portão lacrado, a casa fechada e soube pelas vizinhas – aquelas das cadeiras na calçada – que a família se mudara para outra cidade. Não a família toda, mas a mulher e os filhos. – E Sebastião? – Dizem que ele ficou, mas ninguém o vê.

Fiquei triste de novo. Mas, a vida corre e logo meus pais me carregaram para outro canto da cidade. Passaram-se os anos, muitos anos e uma vez juro ter visto Sebastião no centro da cidade caminhando, as costas arcadas, com um cobertor nas costas. Tentei alcançá-lo, mas ele virou uma esquina e desapareceu. Então, tempos depois, um amigo que trabalhava num hospital psiquiátrico me falou como a morte de um paciente o deixara consternado.

– Por quê?

– Não apareceu ninguém da família… não acho que fosse louco, ele lia muito, ajudava na cozinha fazendo doces e comidas deliciosas… diziam que fora confeiteiro fino, um verdadeiro gourmet.

Uma luz acendeu em mim.

– Como era o nome dele?

– Sebastião.

Sebastião…. meu guru literário e gastronômico… você nunca soube, mas fez  grande diferença em minha vida, me mostrou caminhos.Vá em paz… vá plantar flores e fazer profiteroles no infinito. De tanto dizerem que era louco, você acabou acreditando e morreu na solidão de um hospício.

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

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