O aroma do amor

Ela pensou que esquecera. Não sentia mais nada, sequer um pequeno tremor ao ouvir o nome dele. Era passado. Tudo ficara para trás. Os bens divididos, o amor esquecido. Nem sombra dos abraços apertados, o gosto do beijo demorado, as músicas, as juras diante do oceano.

Vivia bem, solitária, talvez, mas cheia de planos e realizações. Ah! Pobre Teresa, como massacrava os sentimentos para seguir adiante. Cantarolava “desesperar jamais”. O que fizera dos lençóis bordados, da poltrona vermelha e dos quadros de Toulouse Lautrec? Dizia-se aliviada, pronta para um novo amor. Ah, Teresa, é tão fácil assim se desfazer da pele quente – extensão da sua – encostada ao seu corpo no colchão macio? Das horas de amor nas noites chuvosas, dos olhares cúmplices marejados de desejos?

Ela dizia que sim, tudo fora destruído nas conversas duras, nas exigências, no ciúme sem causa, na indiferença que foi corroendo seu coração, na falta de dizer o que deveria ter dito, na falta de ouvir o que queria ter ouvido.

E assim foi: cada um para um lado, cada um com o peito trancado. O que faltou: açúcar ou afeto? Os anos se passaram, guardando no mais recôndito da alma aquilo que poderia ter sido e talvez nunca mais pudesse ser. Amores acabam mesmo. Mas nem todos os amores.

O amor deixa mensagens criptografadas, e se o coração se recusar a abrir, jamais você conhecerá o que o remetente tinha a dizer. O amor deixa um código de barras impresso no cérebro de quem ama, com uma longa sequência numérica, que somente um scan pode ler. Mas esse scan está guardado no meio das mágoas e você não se dispõe nem a digitar os números para identificar o RG do sentimento que ficou.

Mas, desviar os rumos do roteiro da vida não é tarefa para um simples mortal. E, um dia, Teresa entrou na farmácia para comprar um simples, mero e cotidiano creme dental. Passando entre os corredores abarrotados, eis que “as moléculas odoríferas que invadem uma pequena região, bem atrás do nariz, entre as sobrancelhas, um aroma viajou até essas partículas voláteis e foi capturado dentro do nariz, pelos cílios das cinco milhões de células olfativas”. Sem aula de medicina, mas o cérebro é top mesmo, foge à nossa vã compreensão, e ignora o coração quando se trata desses assuntos “menores”, incompatíveis com a racionalidade.

Instantaneamente, Teresa virou a cabeça e seu radar localizou: era o sabonete, aquele sabonete que eles – os amantes separados há tanto tempo – gostavam e que se estendia do banheiro ao quarto. Não sei como o cérebro agiu dessa vez, mas as certezas de Teresa se espalharam no chão, e ela não teve forças para juntá-las. Um aroma! Um sabonete!

Gesto automático, Teresa alcançou o sabonete, aproximou-o do nariz e inspirou profundamente, com os olhos fechados, viajando no tempo e no espaço (são a mesma coisa, não?) e sentiu a água quente do chuveiro escorrendo sobre os corpos abraçados.

– Posso ajudá-la?

– Ei, moça, posso ajudá-la?

A voz longínqua, quase abafada da vendedora despertou–a do transe.

– Não, obrigada, ninguém pode me ajudar. Somente eu mesma.

E saiu rapidamente, sabe-se lá para aonde foi, esquecida do creme dental. Alguém tem um palpite?

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

Deixe uma resposta