O que ainda poderá ser?
Há poucos dias, uma notícia nos jornais mostrava um monumento em homenagem aos mortos durante o Regime Militar, enterrados em uma vala comum, sem identificação ou com nomes falsos, no cemitério de Perus, em São Paulo. De vez em quando, notícias como essa nos traz de volta um passado que não vai tão longe, em termos históricos, lembrando a crueldade de um tempo que muitos de nós vivemos. Mas existe uma geração, aliás, já duas gerações, após aquela em questão, que nem pode imaginar o que foram aqueles tempos, por mais que ouçam, assistam vídeos, ou lêem a respeito.
E grande parte dessas duas gerações nem sequer crêem que possa ter acontecido, assim como já ouvi pessoas dizerem não acreditar que o homem foi à Lua. Que o diga o jornalista Marcos de Assis, pois ele também já ouviu. Quando se toca no assunto, percebe-se que, para muitos, é extremamente maçante falar em ditadura, tortura, mortes e desaparecimentos. Até parece que vivemos em um paraíso, que dos morros e favelas não descem rios de sangue, que as balas perdidas não matam crianças dentro das escolas, que as facções criminosas não cortam cabeças, que o crack não faz território, que velhos e crianças não morrem na fila do posto de saúde, que as UTI’s não escolhem quem vai morrer para desocupar um leito, que tanta coisa…
Analiso essas reações como uma forma de não se envolver, de não querer sair do casulo confortável de onde é mais fácil continuar digitando, ignorando a história do Brasil, agitando passeatas pelas redes, vociferar contra aqueles que teimam em desmontar o castelo. Grito é falta de argumento. E o que tem sido esse castelo de areia? Acreditar e clamar pela volta dos militares ao governo. Como se eles, os militares – tivessem o poder de transformar a lama pegajosa em que o Brasil está patinando em águas cristalinas. Como se a solução fosse apenas a troca de comando de ternos Armani por fardas verdes-oliva. E pronto: novo país, nova moral, novos tempos.
Nem creio que seja o desejo do Exército brasileiro, pois governar nunca foi função de militares e, hoje, a mentalidade deles deve estar bem mudada em relação ao que foi daqueles homens estranhos que anularam o país durante 25 anos. Por que os militares arriscariam sua reputação quase reconquistada, correndo o risco de um vexame, assumindo um país como fizeram seus antecessores e entregando uma nação desgastada?
Por sinal, foi por desgaste que entregaram o poder, começando por uma anistia mais favorável a eles que aos exilados e presos políticos. O que foi mesmo que eles fizeram para o Brasil se tornar uma nação de primeiro mundo durante esse tempo? Solucionaram o problema da moradia, da saúde, do esgoto a céu aberto, do analfabetismo? Como foi mesmo que eles entregaram o Brasil nas mãos de um civil – amiguinho, por sinal – no lugar de Tancredo Neves, numa trajetória dramática e pouco explicada que a história já esqueceu?
Dizem alguns – sem conhecer a história, a política e a sociedade brasileira – que tudo começou a piorar, que o ovo da serpente começou a ser chocado quando os militares deixaram o comando (pela porta dos fundos sem passar a faixa presidencial). Que aí, sim, começou a ser desenhado o inferno em que vivemos hoje, com os presidentes da “democracia” passando seus bastões cada vez mais frágeis e escorregadios. Sabem o que foi isso? Sabem por quê? Herança. Foi a herança deixada por um regime cheio de calabouços e porões manchados de sangue, de pais e mães que não enterraram seus filhos, de jovens torturados até a morte quando poderiam ter sido julgados e condenados, quando fosse o caso do que chamavam subversão, se os poderes – Legislativo e Judiciário não tivessem sido aniquilados, extintos por atos e mais atos “institucionais”, se o Brasil não tivesse sido governado por apenas um poder: o da força.
O que ainda poderá ser?