O tomate rasteiro
O sol estava quente demais naquele domingo de manhã. A feira fervilhava, sacolas se esbarrando, o garapeiro moía a cana, e o pasteleiro não sabia a quem atender primeiro: ‘Sai um de queijo e três de palmito”.
O cego dedilhava um violão descascado, cantando “Eu voltei, agora pra ficar, pois aqui.. aqui é meu lugar…” Amigos conversavam distraídos impedindo o trânsito, e os poodles esticavam os focinhos nas pernas dos passantes. Um domingo típico na avenida cheia de carros mal estacionados, que garantiam o dia dos solícitos guardadores. Um homem magro, de óculos, olhava os tomates na banca de um japonês, absorto, como se estivesse mergulhado em lembranças. O japonês, de olho no freguês, informou:
– Esse é o tomate rasteiro, bom pra molho, barato…
A voz do feirante trouxe o homem de volta.
– Eu sei. Minha mãe plantava esse tipo de tomate no nosso quintal quando eu era criança…
– Muito bom, casca firme, resistente, bom pra molho, repetiu o feirante… Bom pra macarronada… muito bom. Quer levar?
O homem não respondeu.
– Não é muito bonito como os outros, mas a qualidade é de primeira, insistia o feirante.
Entre um freguês e outro, o japonês voltava para falar sobre o jeito de cultivar o tomate, o rendimento da produção.
– É da minha horta, sem agrotóxico, o senhor vai gostar.
– Minha mãe colhia direto do pé para fazer salada… me deu saudade ver esse tomate. Ela fazia uma torta de massa bem fininha com ele e cebola por cima… Salpicava queijo ralado e orégano
– Era pizza, não?
– Não, não era pizza. Era uma torta diferente… nunca mais comi igual.
– Ela ainda planta?
-Ah! Não, não, isso faz muito tempo, minha mãe já morreu, a horta não existe mais…
– Fazia também uma sopa de legumes com carne. Os tomates ficavam inteiros, boiando, bem cozidos por dentro, mas a casca só rompia no prato, quando a gente enfiada a colher…
– Devia ser gostosa, né, perguntou o feirante saboreando em pensamento, a boca quase salivando…
– Era muito boa, não sei o que era melhor, o gosto ou o cheiro. Perto da hora da janta, enquanto a panela fervia, o aroma da sopa se espalhava pela casa. Eu molhava os pedaços de pão no caldo… um gosto inesquecível.
– Vai levar, então, aproveita, tá barato!
O homem pegou uma bacia e começou a enchê-la de tomates, escolhendo um a um, alisando com carinho, como se estivesse colhendo da horta do quintal de sua infância…
De repente, sentiu uma mão ansiosa em seu braço. Era uma mulher forte, dessas despachadas que tomam todas as providências na vida. Tinha os quadris largos, as pernas grossas um pouco apertadas na bermuda preta de lycra e os seios fartos sob a camiseta azul. Usava batom vermelho demais para uma manhã tão ensolarada, e os cabelos tintos de acaju, seguros numa tiara marrom.
-Vamos Alencar?!
O homem estremeceu.
– Eu…
Ele começou a falar, ela olhou para a bacia de tomates, indignada, e foi logo dizendo em voz alta:
– Eu já comprei tomates.
– Mas… esses…
Não teve chance de falar da horta da mãe, da saudade de morder uma fatia grossa de tomate rasteiro temperado com limão, azeite, sal e pimenta do reino.
– Deixe esses tomates aí, Alencar…
– “Dona, é tomate rasteiro, igual ao da horta da…” tentou interferir o feirante.
– Não, não, não… já comprei, disparou a mulher, apressada e impaciente…
– Dinorá, eu quero levar um pouco desses tomates…
Dinorá ignorou as palavras do marido, pegou a bacia da mão dele e devolveu os tomates à banca.
– Me ajude aqui com essas sacolas, Alencar.
O homem de óculos olhou para o japonês, constrangido, os olhos marejados… Pegou as sacolas da mão da mulher e se misturou à multidão. O japonês, então, encheu um saquinho de tomates, rapidamente, deixou os fregueses esperando na banca com as bacias cheias e correu atrás do casal. Dinorá andava depressa, Alencar tentava acompanhar. O feirante gritou, já íntimo: – Ei, seu Alencar… e estendeu o braço.
Alencar olhou para trás, diminuiu o passo, viu a sacola de tomates, esticou o braço e pegou. O japonês sorriu satisfeito. Foi como passar o bastão da solidariedade, bem ali, na maratona domingueira da avenida Portugal. Ainda bem que Dinorá não viu.