A onça pintada – Parte I

Eu estava no elevador desesperada para descer quando notei que não havia botões para acionar, nada que me levasse ao térreo. Um homem pintava as paredes do elevador e sorriu sarcasticamente, zombando de mim, mostrando que ele detinha o poder. Enquanto não acabasse de pintar, nada poderia ser feito.  Ele disse: Vai demorar…dias, talvez meses.

Então vi uma mulher passando e perguntei onde ficava o banheiro? – Está quebrado, respondeu.

Saí do elevador procurando uma porta que me levasse às escadas. O homem colocou só a cabeça para fora do elevador e avisou, sempre rindo:

Não tem escadas. Este prédio é diferente.

Atônita, refém do inusitado, pensei que algum morador poderia me emprestar seu elevador, pois deveria haver um elevador em cada apartamento. Os minutos preciosos passavam como uma torneira aberta, eu precisava ir embora, chegar em casa, arrumar a mala e viajar, não sei bem para aonde. Talvez para Halifax, sempre meu destino imaginário.

Toquei a campanhia. Depois de minutos de espera, uma mulher de meia idade, talvez uns 60 anos, entreabriu a porta presa por uma corrente de segurança. Via somente a metade de seu rosto. Parecia uma hiena. Expliquei minha situação surrealista, quase implorei para que ela permitisse usar seu elevador.  Ela me examinou com metade dos olhos com ar nebuoso e começou a me fazer perguntas. Era um interrogatório, queria saber se eu era comunista, qual minha idade, onde estudei, minha profissão, o nome dos meus pais… então foi aí que ela se irritou, pois não me lembrava o nome dos meus pais. Fiz um esforço tremendo, mas não consegui lembrar.

Ela fechou a porta com grosseria, mas fiquei do lado de fora esperando que ela refletisse e mudasse de idéia. O pintor viu a cena, estava de novo com a cabeça para fora do elevador e riu um riso feio de dentes podres e fétidos.

Continuei esperando junto à porta do apartamento, pois me dei conta de que era o único. No restante do andar só havia paredes. Não sei quanto tempo passou. Ouvi a mulher cantarolar e sons de panelas. Então, um aroma delicioso passou pelas fímbrias da porta. Tentei identificar o que era. Pareceu-me salgado, depois doce, depois agridoce… um fio de vinho tinto, gengibre, alho, cebola…

Meu estômago doeu. Toquei novamente a campainha, uma, duas, três, dez vezes: começava a me desesperar. Senti a presença da mulher encostada à porta do lado de dentro. Esperei, chorei com raiva, muita raiva, com ódio daquela estranha que tinha um elevador lá dentro e me torturava daquela maneira. Vou perder a viagem vou perder minha passagem tão cara e difícil de conseguir.

Então, comecei a me perguntar como fora parar naquele lugar estranho. Tentei recordar os momentos anteriores e só me lembrei que antes de estar naquele elevador sem botões para descer nem subir, eu conversara com Angelina e ela me contara uma história também estranha. Disse que alguém a perseguia, pois ela roubara um anel.

De quem?

De uma mulher morta. Tirei do dedo dela, antes de fecharem o caixão.

E me mostrou o anel. Era lindo, cheio de pedrinhas pequenas em volta de uma esmeralda. Mas, aí, ela desceu. Como? Por onde Angelina desceu?

Estava quase me lembrando de outras passagens quando ouvi o grito da mulher:

– Você ainda está aí? Tem certeza de que não é comunista?

– Não, não sou, juro que não, nem sei direito o que é ser comunista, o muro já caiu, lembra?

– Qual muro?

– Deixa pra lá… é um muro qualquer, são vários muros, todos estão caindo.

De repente, ela abriu a porta. Entrei depressa antes que ela se arrependesse. E o que vi me petrificou. Não era uma mulher, mas uma onça pintada. Recuei apavorada.

(continua na próxima semana)

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

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