A onça pintada – Parte III (a fotografia)

– Para Halifax.

Fiquei sem palavras.

Angelina me deu um beijo no rosto e vi que estava sem o anel.

– O que você vai fazer lá?

– Na volta eu explico, se tudo der certo… mas não se preocupe… e caminhou em direção à porta.

– Espere Angelina…por que esse mistério, você nunca me falou em Halifax.

Mas sempre pensei e você vive falando de lá. E se foi.

Viajar para Halifax como se fosse para uma cidade do interior, a poucos quilômetros dali. Talvez fosse acompanhada daquele homem que eu vira no carro e nem tive tempo nem vontade de perguntar quem era. Um namorado, por que não? Mas ela me diria.

Fiquei parada olhando para a caixa… eu e a caixa. Forcei levemente a tampa, estava trancada, lacrada. Uma caixa linda de madeira entalhada, que antigamente se usava para guardar cartas. Não me era totalmente estranha. Eu já a vira em algum lugar… talvez no quarto de Angelina mesmo… Mas não!!!! Não. De repente lembrei…. vi aquela caixa de relance em meio ao terror do pesadelo diante da onça pintada, em um canto daquele cômodo onde a onça cozinhava….. Perturbada, comecei a andar pelo apartamento de um cômodo ao outro forçando a memória, imaginando que minha loucura enfim emergira……um dia a loucura de cada um pode dar sinal de vida e então tudo se embaralha. Foi assim com Eleonor, uma colega de trabalho. Um dia sorrindo e dançando numa festa e no outro, trancafiada em um hospício. Foi assim com Otávio, amigo da família, um dia rindo e dançando e no outro, enforcado no banheiro… Mas esse não era o ponto.

A tentação de abrir a caixa foi grande, mas não havia como não deixar sinais da violação. Levei para quarto, a coloquei no armário das coisas guardadas, aquelas coisas que um dia gostamos de rever, como caixas de fotos, uma boneca de estimação…Então, percebi uma delas com a tampa mal fechada. Puxei para arrumar e resolvi dar uma olhada nas fotografias que eu sempre programava separar as importantes e jogar as outras no lixo. Afinal, eu não conseguiria me concentrar em nada naquela tarde de sábado.

Belas memórias. Eu abraçada a meu pai e minha mãe, devia estar com oito anos… Na praia, outra singela, eu adolescente segurando um canudo… na fazenda de meu avô… eu adulta…. eu e Angelina sorrindo as duas ,  eu e Angelina novamente… parecíamos irmãs. Cansei. Já estava fechando a caixa quando me chamou a atenção a metade de uma fotografia como se esperasse ser vista, destacando-se sob outras. Puxei lentamente, pois meu coração pressentia algo estranho, uma sensação de medo e curiosidade. Era Angelina entre sua mãe e uma mulher de olhos verdes intensos, com a mão pousada no ombro esquerdo de Angelina. Em sua mão, um anel grande sobressaia. Era o anel não tive dúvida, o mesmo do sonho/pesadelo, o mesmo que eu vira no dedo de Angelina naquela manhã. Não era a tia Anete de quem ela ganhara o anel. Aquela mulher somente poderia ser Blanche, a que morrera.

(na próxima semana, o final)

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

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