Os olhos de ninguém

Duas da tarde nas ruas de uma cidade qualquer, nesse mundo de horizonte encoberto pelos edifícios horrorosos, caixas verticais guardando rotinas, dores e alegrias nas janelinhas apertadas do pombal humano.

Sei que não vou suportar o calor do sol implacável derretendo os paralelepípedos que bloqueiam qualquer umidade emitida pelas parcas árvores quase doentes e ressentidas com a natureza. Ou seria com a humanidade?

Penso em como voltar para um lugar de onde nunca deveria ter saído e me vejo diante de uma vitrine e de um cartaz anunciando viagens a preços módicos para todos os lugares. É só escolher. Qualquer um serve desde que não se vejam muitos muros e as casas tenham jardim. E água. Muita água: rios, lagos, cachoeiras ou apenas chuva.

Penso, penso, o sol me queima as costas e a nuca, como se vê, estou de costas para o astro. Melhor me abrigar em um café e esperar a lua, mas vai demorar. E decido entrar na casa das viagens. Escolho uma e logo alguém me diz que não é aconselhável porque o país está em guerra. Aponto outra opção e ouço que lá agora é inverno e que a neve cobre toda a paisagem.

– Por que você não escolhe o lugar de onde nunca deveria ter saído? Aquele alguém me pergunta.

– Como sabe disso?

– Você disse, agora mesmo, em voz alta.

– É verdade, também ouvi, diz uma mulher

– É sim, diz uma criança.

Então vi que a sala estava cheia de pessoas, todas olhando para mim com olhos de espanto e não reconheci nenhum dos olhares, pois eles nunca estiveram presentes em minha vida e agora me interrogavam como se criticassem o quê mesmo? E os olhares não tinham mais corpo, nem de mulher, nem de criança ou de homem. E eram muitos.

De que direitos ela se arvoraram para me tratar como se eu estivesse falando com elas na intimidade do sofá da casa delas tomando café com bolachas?

Ignorei todos aqueles olhos de ninguém e pedi a passagem para o lugar do qual nunca deveria ter saído. Só de ida.

– Só de ida não vendemos.

– Mas eu não quero voltar para cá.

– Um dia você vai ter de voltar

– Por quê?

– Vai ter de voltar, disseram todos os olhares ao mesmo tempo num coro uníssono. Porque um dia você voltou, lembra? E se voltou é porque sentiu saudades. Vai sentir de novo.

– Então eu não vou.

– Vai sim, disseram os olhares severos – quase furiosos, – porque a vida é assim: vamos e voltamos, depois vamos e depois voltamos de todos os lugares, mas existe um lugar de onde não voltamos…

– É?

– Você quer ir pra lá?

– Não sei…. onde fica? Tem passagem só de ida?

– Tem, mas nunca sabemos quando vamos embarcar… pode ser hoje, amanhã, daqui a dez anos. Você quer ir?

– Não sei se quero.

– Então, vá para o sol incandescente e só volte aqui quando souber.

Obedeci, e a claridade me ofuscou. Meus pés sentiram o fogo do paralelepídedo. A lua ia demorar. Não vi mais nada e acho que entrei novamente na casa das viagens. Penso que entrei. Nunca vou saber.

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

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