Sangue no asfalto e fé nos homens

A velocidade do trânsito na avenida movimentada logo de manhã, era uma pequena mostra de como seria o decorrer da sexta-feira. Os motoristas apressados, fechados em suas máquinas individuais, aceleravam fundo no farol amarelo para escapar do vermelho e ganhar tempo na agenda urbana, cada vez mais apertada. O sinal estava aberto para Sandra que, como os outros, corria para o trabalho. E, fechado para Sebastião, pedestre, aposentado, mais de 70 anos, cabelos brancos, óculos de grau, cidadão comum, sem posses, dependente talvez da minguada esmola mensal da Previdência. Mas, sem sinal para pedestres e com carros vindos de três lados, como saber em qual momento ele poderia atravessar?

Sebastião avançou. Sandra brecou em cima dele, e não conseguiu evitar o choque. O baque do corpo no asfalto quente, os olhos assustados de Sandra, a dor de Sebastião, com medo de morrer ali, no chão, longe da família, dos filhos, cercado de estranhos e de sons que pareciam tão distantes. “Meu Deus, não deixe isso acontecer”, pedia em pensamento. “Meu Deus, não o deixe morrer”, pedia Sandra também com dor no coração, segurando a mão de Sebastião, enquanto o socorro não chegava. Pouco a pouco, pedestres foram parando e os carros diminuindo a marcha diante de mais uma cena chocante do cotidiano que se desenrolava ao vivo, tingida de sangue. Alguém segurava os óculos quebrados de Sebastião.

Então, surgiram os novos personagens do triste roteiro da manhã de sexta-feira: Jorge, Sergio e Flávio. Rapidamente, desceram do carro-ambulância vermelho com a maca de madeira, os protetores para evitar fraturas mais graves, movendo-se os três numa sintonia precisa, com a agilidade de quem sabe avaliar a preciosidade de cada minuto, a delicadeza de quem conhece a fragilidade do corpo humano e o perigo de um gesto mais brusco; com o semblante grave de quem tem a medida exata do valor de uma vida. Logo, chega Antonini. Estaciona a moto e se integra à equipe de socorro. Os olhos dos curiosos acompanham todos os movimentos. Mulheres segurando sacolas magras de supermercado, homens amparando a bicicleta na cintura, esticando o pescoço para enxergar entre os ombros que se espremiam formando um semicírculo em torno de Sebastião, pessoas esquecidas do horário, da pressa e dos próprios problemas, estáticas, com o peito apertado, uma sensação esquisita… com dó de Sebastião pela dor física e pela solidão do medo… com dó de Sandra pela dor moral; com admiração e respeito por aqueles homens fardados que chegaram como seres de outro planeta para resgatar Sebastião do asfalto quente.

Parodiando Milton Nascimento, eles surgiram numa astronave vermelha e fulgurante, impávidos como Mohamed Ali, apaixonadamente como Peri, tranquilos e infalíveis como Bruce Lee. Por um momento, ainda que tenha sido só por um momento, naquela cena rotineira da cidade grande, aquelas pessoas puderam sentir que é possível, sim, ter fé no ser humano.

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

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