Uma dor sem remédio

Não queria mais os livros calados cheios de ideias alheias cobrando sua atenção. Nem os discos de vozes que não consolam e o telefone que invadia seu silêncio, insistente e deselegante.

Olhava para a rua e lá também não era seu lugar. Esperava um expresso da meia-noite que a levasse a Istambul ou às águas do rio Peperiguaçu, mas ele estava sempre atrasado, perdia os horários e ela voltava a dormir o sono da solidão sob lençóis que alguém fabricara em jornadas extenuantes da exploração humana.

Nada lhe era mais familiar, nem ela mesma, e sua respiração avisava que um dia iria parar e ela não teria como fazê-la voltar. Mas, não se importava.

Movia-se pelos cômodos labirínticos e dos pensamentos e eles não se encontravam em lugar algum.

Alguns diziam que estava triste, infeliz ou louca… podia ser ou não ser, dependia da maré dos seus olhos, ora alta ora baixa, ora baixa, ora alta.

Clemence estava fechada em si e em seu pequeno espaço chamado casa desde o dia em que aquele homem morreu. Aquele homem habitara sua vida com o ardor dos apaixonados, com a serenidade de um amigo e com a doçura de uma criança. Aquele homem fora sol e lua em seus dias de adolescente e de mulher. A pele dele era extensão da sua e seu cheiro, uma benção a cada amanhecer.

Clemence sabia, bem no âmago, por trás das brumas, que não podia fenecer e murchar como uma planta sem raiz. Mas, seu coração não sabia disso e clamava pelas horas que fizeram de sua vida uma vida, e doía como uma chaga de sangue invadindo seu corpo. Como dói um coração, esse músculo cheio de tubos? Dizem que coração não dói. Mas, o dela estava se tornando uma ferida sem tratamento, sem pomada que cicatrizasse.

O que você vai fazer, Clemence? Até quando suas noites serão claras entrecortadas de saudade, fantasmagóricas e viajantes como se não pertencesse mais a esse mundo? Acorde, Clemence. Deixe as chagas fecharem e volte para o mistério de respirar sem perceber que respira, para a dádiva de comer uma fruta doce como foram os beijos daquele homem.

Feche essa porta que a leva para o infinito e a deixa solta como um balão pairando, pairando…

Será que Clemence ouviu? Quem pode julgar Clemence? Penso que, num átimo de lucidez, ela se lembrou de uma personagem de Garcia Marques que arrumou a cama bem arrumada, deitou-se e fechou os olhos para esperar a vida acabar. E fez exatamente igual.

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

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