Quando criança era só criança

Estudávamos, éramos bons alunos. Não faltávamos à escola. Nossos pais só nos davam razão quando tínhamos razão. Brinquedos eram compartilhados. Aprendemos a ser altruístas.

Na maioria das vezes, nosso período na escola era o da manhã. A tarde precisava ser livre pra fazer tarefa antes de ir brincar na rua. Nós fazíamos de fato a tarefa de casa. A rua não tinha saída. Ali brincávamos de mamãe-da-rua, balança caixão, elefante colorido. Cama de gato, salada mista, bets, dominó, tê-de-esconde (esconde-esconde), stop, estátua. Pega-pega, amarelinha, queimada, roda e detetive. Com o baralho aprendemos a jogar, vinte e um, bisca, cacheta e até truco. Não! Ninguém ficou viciado em jogo.

Trocávamos figurinhas de álbum de figurinha de chiclete, papel de carta. Pulávamos elástico, corda e muros. Andávamos de bicicleta, jogávamos futebol, basquete e vôlei. Tomamos gosto pelo esporte. Vez ou outra um sortudo ficava sem a tampa do dedão por jogar descalço e uma bola caía no terreno do vizinho. Nosso físico estava sempre ativo. Pra completar os times, deixávamos entrar um ou outro de outra vizinhança em nossa “ruinha”. Era assim mesmo que chamávamos nossa rua sem saída, mais tarde reapelidada por nós de “condomínio”.

Não éramos e não ficamos obesos depois de adultos. Não conhecíamos a palavra preguiça. Sentíamos cansaço quando estávamos no limite. Férias escolares nem se fala. Casa mesmo era só pra almoçar, tomar banho e jantar.

As mães não gritavam conosco, elas preferiam assistir às nossas brincadeiras e se divertirem conosco. Não dividiam problema de adulto com a gente.

Saudade.

Éramos leais um com o outro. Ninguém dedurava ninguém. Preservávamos os segredos. Tínhamos quase sempre o mesmo número de irmãos e as idades combinavam, o que facilitava pra formar equipes das gincanas que, sozinhos, organizávamos.

Que saudade daquelas brincadeiras de infância. Que triste sentir que as crianças hoje nunca experimentarão desse romantismo.

Hoje pude ler o texto de um amigo que menciona a falta de peraltas na praça. Ele fala dos peraltas que arquitetavam traquinagens nas ruas, nas escolas, nas quermesses, nos banheiros públicos. Parei para refletir. E não é que faltam mesmo? Faltam crianças mais crianças em nossas escolas, nossas ruas, nossas famílias, nossas vidas. Faltam crianças sapecas, que façam arte com arte, não com maldade.

Faltam-nos crianças com jeito de criança, com roupa de criança, com papo de criança, com alma de criança. Meus amigos de infância e eu fomos assim. Não éramos mal-intencionados, não agíamos com malícia. Brincávamos, brigávamos, fazíamos as pazes e voltávamos a brincar.

Nossos pais não se metiam em brigas nossas. Sabíamos nos defender sem nos ofender. Adultos não ficavam sem se falar por causa de rixa de rua entre a molecada.

Meninos brincam com cano usado para controle de enchentes em Las Pinas, Manila (Foto: Erik de Castro / Reuters)
Meninos brincam com cano usado para controle de enchentes em Las Pinas, Manila (Foto: Erik de Castro / Reuters)

As fotos dos aniversários denunciam o quanto éramos felizes sendo crianças naquela ocasião. Não tínhamos preocupações e nossos pais não tinham medo que alguém fosse lá pra nos roubar ou para cometer alguma violência conosco.

Estávamos bem longe de sermos como os pequenos isolados sociais de hoje, que passam o dia em casa, no quarto, com fone de ouvido e olhos cravados no aparelho celular, na TV, totalmente escravos da tecnologia. Eles são os meninos que buscam pelo amor eterno, e as meninas de dez ou onze anos as “mulheres” que exibem seus “grandes peitos” em selfies sensuais nas redes sociais.

Que bom poder relembrar dos tempos e dos amigos da “ruinha”. Que infelicidade notar que crianças como as daquela época se perderam em algum lugar no passado e hoje estão fazendo falta.

Lucimara Souza

Formada em Letras, Pedagogia e especialista em Comunicação: linguagens midiáticas, atualmente professora. Aprecia a escrita permeada pela criatividade, humor e certa dose de sarcasmo.

3 thoughts on “Quando criança era só criança

  • 30 de junho de 2017 em 14:00
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    Belo texto buscado lá do fundo de um túnel do tempo que só volta nas lembranças. Parabéns Lu!

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    • 30 de junho de 2017 em 14:30
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      Obrigada, meu amigo, pela leitura e comentário. Volte sempre por aqui.
      Um abraço!

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  • 30 de junho de 2017 em 14:49
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    Parabéns Lu por m
    ais um belíssimo texto

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