Diário de bordo: Encantos a bordo

Seguimos um pouquinho mais na vida a bordo. Navegando pelos Fiordes Noruegueses, e tentando uma conexão na internet, que é através de satélites, mas nem sempre consigo sinal. Tem partes da navegação onde não temos nenhuma conexão, isso atrapalha o serviço de alguns departamentos que necessitam conectar-se com agentes de portos ou com o escritório em terra.

A temporada pela Noruega está chegando ao fim e juntamente a isso meu contrato. Aqui vivemos de temporadas, contratos e tempo limitado. As rotinas mudam a todo instante, não podemos planejar e programar muito as atividades pessoais, pois tudo depende dos horários de trabalho, hora de chegada e saída do navio.

Uma vez por semana temos simulacros de emergência, obrigatório e às vezes treinamentos inesperados. Nos transatlânticos existe o IPM (In Port Manning) onde 30% da tripulação tem que permanecer a bordo enquanto estamos atracados no porto, se houver uma emergência temos um número suficiente de tripulantes para evacuar o navio. Isso complica um pouquinho a vida do tripulante, pois às vezes ocorre de ter “tempo livre” e não poder descer do barco para conhecer os lugares, o que é muito frustrante!

Curiosidade: trabalhando no mundo, não são em todos os portos que tripulantes podem desembarcar. Existem países que tem listas de nacionalidades restringidas e membros da tripulação não podem nem caminhar no píer. Em países como: Colômbia, República Dominicana, Índia, África do Sul e em mais, aproximadamente, uns 25 países o acesso é restrito e, no porto do Marrocos, nem com autorização podem sair do navio.

Como brasileiro temos sorte, não somos restringidos em nenhum desses lugares.

E existem cidades na França, Holanda e Itália onde os tripulantes podem sair do navio e tem permissão de ir até uma distância específica entre o barco e a cidade. São acordos que existem entre esses países: Índia, Indonésia, Jamaica, Filipinas, Marrocos, Nepal, África do Sul, Santa Lucia, Vietnã, Rússia, Ucrânia e Zimbábue, caso o tripulante seja de uma dessas nacionalidades tem que ter um visto chamado Visto Schengen.

Voltando no último texto, escrevi sobre relacionamentos a bordo. Você deve estar se perguntando como os tripulantes tem relação sexual se a maioria tem que compartilhar quartos. Não é tabu dizer para aqueles que perguntam sobre isso, escrever que é um pouco complicado! (risos).

Como mencionei antes, dependendo o cargo a bordo, temos alguns privilégios inclusive com relação aos quartos. O oficial com duas raias ou mais tem o privilégio de ter um quarto não compartilhado. Se o tripulante é casado pode ser que tenha um quarto de casal. Isso depende muito da companhia de cruzeiro, nem sempre é assim. Lembro-me de ter dividido o quarto com uma tripulante casada há 11 anos, ambos trabalhando no mesmo navio e tiveram que viver em quartos separados, durante o contrato.

Aqui utilizamos o senso comum, ou logo ao embarcar é melhor esclarecer os limites, deixando claro não trazer tripulante do sexo masculino para dormir no quarto ou deixar os horários que você não estará e assim pode deixar a cabine livre para o “room mate” (companheira/o de quarto).

Temos que nos ajustar com relação a essa situação já que não existe uma lei ou regra a bordo pra esse tipo de situação. A única regra que existe é no caso dos quartos compartilhados, na qual determina que o companheiro será uma pessoa do mesmo sexo que o seu.

No caso da minha ex-companheira de quarto ela deixava suas coisas pessoais na nossa cabine e compartilhava as noites com o marido. O quarto dele era compartilhado e o “room mate” não se importava em compartilhar com o casal durante as noites. Para dar um pouco mais de privacidade a cada tripulante, as camas e beliches levam uma cortininha.

Já aconteceu de um companheiro de trabalho uma vez ter que pedir para hospedá-lo numa noite, pois estava cansado dos escândalos que a namorada do companheiro fazia no quarto. Alguns tripulantes perdem o “bom senso” nessas horas. Naquela noite ele deixou o casal desfrutar do momento e, lógico, no dia seguinte dar uns toques ao companheiro. No final sempre damos um jeito de nos acomodarmos e seguir com as convivências pessoais e profissionais.

Nesse meu contrato, as primeiras semanas foram um pouco complicadas. Não tive a oportunidade de conhecer a minha companheira de quarto, pois nossos horários eram bem diferentes e não tivemos tempo de nos conhecermos. Nem ao menos de dizer um “oi”, muito menos conversar sobre trazer outro tripulante para o quarto. Imaginava que ela iria utilizar o “bom senso”, mas não foi assim durante alguns dias da primeira semana a bordo.

Numa das noites enquanto eu dormia, ela trouxe um tripulante no quarto, e às vezes eu acordava pensando que estava ancorando em algum lugar, mas era apenas a cama chacoalhando… (risos).

Nesse caso a situação foi um pouco mais delicada, pois não havia uma intimidade para conversar com ela sobre os limites, já que ela vivia na cabine antes da minha chegada. Era uma tripulante inglesa e o melhor meio que consegui para me comunicar foi através de uma cartinha que escrevi educadamente, pois não queria mal entendidos logo no começo do contrato. Por sorte ela não se ofendeu com a carta e passou a respeitar o espaço que era nosso, mas se caso tivesse que reportar a situação, geraria um outro problema…

Quando comentei sobre as hierarquias a bordo, os problemas também são escalados, assim que a primeira pessoa que eu teria que reportar era ao gerente do departamento, com quem ela também tinha um relacionamento. Muitas vezes existem situações que te deixam numa saia justa. Por fim tudo foi resolvido sem ter que reportar a ninguém, pois ela respeitou o espaço e o restante você já sabe como funciona, somos solidários, cúmplices e o problema é de cada um.

Sempre que eu embarco torço pra ter uma companheira de cabine que seja bem legal ou que tenha um namorado que seja “Oficial” assim dificilmente irei encontrá-la no quarto chacoalhando a cama. Somente nesse contrato de cinco meses já passaram cinco tripulantes de várias nacionalidades na minha “casa”. Inglesa, indiana, filipina, escocesa e por último uma brasileira. Assim, temos que nos adaptar com cada companheiro de quarto e de trabalho, cada um com seus sonhos, crenças, história de vida, experiências, intimidade, hábitos e costumes. É incrível como passamos a conhecer-nos e nos familiarizamos a bordo com pessoas que jamais havíamos visto na vida. Talvez essa experiência seja um dos encantos de trabalhar a bordo.

Graziella Marasea Cebollero

Viaja o mundo a trabalho e com isso reúne diversas histórias e fotos que irá compartilhar com a gente.

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