Assassinos da Lua das Flores (2023)
Essas narrativas se enraizaram na modernidade, um período crucial na formação e expansão do cinema.
Não é segredo que a árdua construção do solo do continente americano foi cimentada com o sangue dos povos originários, um capítulo muitas vezes negligenciado pela história convencional. A arte, em especial o cinema, frequentemente reforça esses estigmas, perpetuando uma narrativa eurocentrista que, por vezes, vira as costas para a cruel realidade enfrentada pelos povos massacrados na era da colonização.
O gênero western, que em tempos áureos marcou uma era gloriosa para as produções hollywoodianas, teve um impacto global, influenciando desde os spaghettis italianos até o cinema novo brasileiro. No entanto, é impossível revisitar esse período sem lembrar das representações distorcidas que perpetuaram estigmas por décadas. O icônico John Wayne personificou o arquétipo do homem viril e civilizado, muitas vezes em confronto com indígenas retratados como seres animalescos e selvagens. A narrativa, por muito tempo, pintou um retrato de um povo sedento por destruição, enquanto o homem branco emergia como o portador da paz, aniquilando culturas inteiras através do poder das armas de fogo, ignorando suas ricas histórias.
Essas narrativas se enraizaram na modernidade, um período crucial na formação e expansão do cinema. Contudo, à medida que a consciência social, cultural e historiográfica avança, somos capazes de revisitar esse legado com uma perspectiva mais crítica. Os povos originários têm suas próprias histórias, nuances culturais e particularidades que foram eclipsadas por muito tempo. As armas de fogo, que outrora silenciaram suas vozes, como na arte, hoje, estão cada vez mais perdendo espaço para uma grande parcela da população, aqueles que resistiram pelas margens, tem que voltar aos centros.
Felizmente, em meio a essa transformação, nomes como Martin Scorsese emergem como faróis de uma abordagem mais progressista. Com uma carreira sólida e gloriosa, Scorsese continua a respirar vida nova em suas obras, desafiando constantemente as convenções e proporcionando uma visão mais aberta e crítica do mundo ao nosso redor. Em um cenário onde a introspecção e a reavaliação tornam-se imperativas, o cinema, como espelho da sociedade, tem o papel vital de questionar e reinterpretar o passado, trazendo à tona as vozes que foram silenciadas por tanto tempo.
Em “Assassinos da Lua das Flores” (indicado a 10 Oscar), Scorsese mais uma vez nos imerge nas entranhas da história americana, revelando como a nação foi construída pelos rios de sangue que fluíram através de seus eventos marcantes, algo que já se tornou característico em suas obras anteriores, como “Os Bons Companheiros”, “O Irlandês” e “Gangues de Nova York”. Contudo, neste novo filme, Scorsese exibe sua verdadeira paixão pelo cinema, entregando possivelmente uma de suas melhores obras até o momento. Aos 81 anos, o renomado diretor demonstra uma habilidade única em se renovar, apontando novos caminhos para suas narrativas e mantendo acesa a chama de sua paixão artística.
A narrativa nos conduz por um novo território no universo de Scorsese, onde sua lente, antes focada naqueles que praticavam a violência, agora se volta para os que sofrem diretamente com ela. O filme desmistifica o sonho americano ao explorar a própria história dos Estados Unidos.
No contexto do faroeste contemporâneo, somos apresentados aos Osage, detentores das terras e do precioso petróleo em uma pequena região dos EUA. A cena inicial, marcada pelo surgimento do petróleo em suas vidas, é um espetáculo cinematográfico inesquecível. A câmera lenta acompanha o líquido escuro, gosmento e precioso escorrendo pelos corpos enquanto celebram, proporcionando uma aura de esperança que, ironicamente, antecipa a tragédia iminente.
Como é recorrente na história da nação, a ganância do homem branco em relação à terra e ao petróleo é explorada com maestria por Scorsese. A trama revela a intrusão sorrateira no íntimo dos Osage, revelando um plano meticuloso de dizimação de dentro para fora. A obtenção de confiança é a chave para evitar suspeitas, construindo uma trama intensa e complexa.
A história se inicia quando Ernest (Leonardo DiCaprio), retorna da guerra para Osage County, na cidade, ele é abrigado pelo seu tio Bill (Robert De Niro), um homem que supostamente é generoso e bem quisto por todos, mas sua fachada é desmontada aos poucos dando luz a suas verdadeiras intenções que são moldadas pela ganância e o controle do poder da cidade. Vivendo um ato de encenação ao lidar com aquelas pessoas da cidade, falando o idioma Osage, conquistando as suas confianças para que através disso, possa manipular todos e destruir aquele povo. Um articulador que representa muito bem toda a podridão que irá ser revelada durante a trama, controlando até mesmo o seu sobrinho, que se encontra no papel de falso tolo, tolo por sua ganância e aparência, um verdadeiro bronco e falso, pôr apesar dessa suposta ingenuidade, tem a consciência de seus atos e maldades. Ernest, começa a trabalhar como motorista de táxi e é nessa jornada que ele encontra Mollie (Lily Gladstone), uma herdeira de terras que obtém petróleo, uma das mais cobiçadas por Bill.
O filme revela, de forma impressionante, como a ideia de eugenia está presente na construção dos Estados Unidos, explorando as complicações que surgem das diferenças entre propriedade privada e herança. Na trama, homens brancos se casam com mulheres indígenas, planejando suas mortes, que, além de garantir a posse da terra por meio de heranças, criam um caminho sombrio cheio de traições e maquinações. Ao se afastar desse jogo perigoso, surge uma história de limpeza étnica e separação social, habilmente costurando os elementos de uma nova ordem social branca. Em meio a essa dominação branca e esquecimento dos povos Osage da historiografia norte americana, se sobressai a força dos povos originários, muito bem representado pela personagem Mollie, que ao enfrentar as crueldades e o extermínio de todos ao seu redor, consegue ir a luta em busca de justiça, mesmo que a lei seja dos homens brancos, ela persiste e vai até o máximo que sua força possa chegar. Lily Gladstone consegue dar vida a essa personagem de uma forma abismal, o silêncio e os olhares são palatáveis, sua forma de representar além das palavras é digna de uma grandiosa atriz.
É intrigante observar como Martin Scorsese moldou a narrativa de “Assassinos da Lua das Flores” ao longo de sua evolução. Inicialmente concebido como uma adaptação mais fiel ao livro, com um agente do FBI como protagonista, o diretor ousadamente reexamina a trama, deslocando o foco para personagens até então esquecidos pela história. Surge assim uma obra que não apenas entreteve, mas também deu voz àqueles cujas histórias foram silenciadas.
O filme inicialmente propunha-se a ser uma exploração da formação do FBI por meio de um caso central, mas, em uma reviravolta marcante, Scorsese reformula sua perspectiva sobre o momento histórico. Em uma cena notável, o próprio diretor faz uma aparição, iluminando os verdadeiros protagonistas desse período e desafiando a narrativa convencional que sempre relegou essas figuras à obscuridade.
A magistralidade da cinematografia de Rodrigo Prieto se edifica na tela, dando vida às sombras e à crueza do tempo vivido pelos personagens. A bela parceria entre Scorsese e Prieto que já esteve presente em outros filmes, revela-se mais uma vez como um casamento perfeito, capturando a essência da narrativa de forma visualmente impressionante.
É sempre muito legal ver a fidelidade de Scorsese aos seus colaboradores na continuidade de parcerias, como a notável presença de DiCaprio e DeNiro, bem como a colaboração constante com a talentosa montadora Thelma Schoonmaker. Em “Assassinos da Lua das Flores”, Schoonmaker mais uma vez demonstra sua maestria na criação de um ritmo narrativo impecável, fornecendo a dose certa de emoção para ilustrar o silêncio dos Osage e a atormentação dos homens brancos envolvidos.
Um tópico à parte é a impressionante construção da trilha sonora a cargo de Robbie Robertson, que se despede de maneira singular. Membro da icônica The Band, cujo último concerto foi registrado por Scorsese em “O Último Concerto de Rock”, Robertson dedicou-se posteriormente à carreira solo e à função de consultor musical nos filmes do renomado diretor. Ao longo de quatro colaborações em trilhas sonoras, desde “O Rei da Comédia” até o póstumo “Assassinos da Lua das Flores”, os dois estabeleceram uma parceria musical rica e envolvente. Essa última colaboração, lançada pouco após a morte de Robertson aos 80 anos, é um testemunho da genialidade musical que caracterizou sua carreira. Nascido de uma mulher da Seis Nações do Grande Rio, no Canadá, Robertson molda a trilha sonora como um orgulhoso filho que deseja apresentar suas raízes ao mundo. Sua dedicação é evidente, ressoando não apenas como um conjunto de músicas, mas como um testamento das origens do compositor. O legado de Robertson, que sabia exatamente o que fazer e como fazer, se funde com as influências de uma vida rica em experiências. Um trabalho que merece ser ouvido com atenção, uma vez que não apenas complementa a narrativa cinematográfica, mas também serve como um resumo brilhante de uma carreira musical encerrada com chave de ouro.
“Assassinos da Lua das Flores” é uma obra-prima que desafia e revisita o passado, revelando os verdadeiros protagonistas esquecidos pela história. Scorsese, com sua maestria e paixão, continua a surpreender, mostrando que sua chama artística permanece mais viva do que nunca. Este filme é não apenas um testemunho de seu talento, mas também um convite para ansiarmos por mais obras impactantes para os próximos anos.
Ficha Técnica
Direção: Martin Scorsese
Roteiro: Martin Scorsese, Eric Roth (baseado na obra de David Grann)
Elenco: Leonardo DiCaprio, Robert De Niro, Lily Gladstone, Jesse Plemons, Tantoo Cardinal, John Lithgow, Brendan Fraser, Cara Jade Myers, Janae Collins, Jillian Dion, Jason Isbell, William Belleau, Louis Cancelmi, Scott Shepherd, Everett Waller, Talee Redcorn, Yancey Red Corn, Tatanka Means, Tommy Schultz, Sturgill Simpson, Ty Mitchell, Gary Basaraba, Charlie Musselwhite, Pat Healy, Steve Witting, Steve Routman, Gene Jones, Michael Abbott Jr., J.C. MacKenzie, Jack White, Larry Sellers
País: EUA
Duração: 306 minutos
Sinopse: O ano é 1920, na região norte-americana de Oklahoma e misteriosos assassinatos acontecem na tribo indígena de Osage, uma terra rica em petróleo. O caso foi investigado pelo FBI, agência que tinha acabado de ser criada na época.
NOTA: 5