Um amigo secreto

Leia a segunda crônica da jornalista e escritora, Matilde Leone.
Foto: Divulgação

Ainda que a gente não receba o presente desejado, não vamos perder o prazer de abrir um embrulho caprichado, nesse Natal. Bem, o conteúdo pode não ser aquele desejado com que as páginas dos Apps, indiferentes aos nossos saldos bancários, tentam nos seduzir, nos chamando até pelo nome (Veja o que separei para você ou: Você também pode gostar de…) Uma intimidade comovente. Alguém – seja de que mundo for – preocupando-se conosco e dividindo em 10 ou 12 tentadoras parcelinhas? É emocionante!

Voltando à realidade que vez ou outra nos dá um safanão, vejo que o delicado ato de presentear pai, mãe, namorado, sogra, marido, sobrinhos, filhos, amigos e tanta gente mais está me parecendo um pouco distante, pois percebo que as parcelinhas tentadoras podem se transformar em uma verdadeira fortuna nesses dias em que nem o Auxílio Brasil vai amenizar a vida de milhões de brasileiros que sonham com uma ave – que nem frango é – assada em cima da mesa. Que mesa, gente? E também, que não temos mais essa “fortuna” para ver olhos brilhantes diante de um perfume importado, ou nacional mesmo, ou uma caixa de chocolate belga, um par de brincos de prata indiana ou a máquina de fazer pão.

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Então, decido: esse ano não tem presente pra ninguém; vamos fazer uma oração agradecendo o quase, talvez, quem sabe, Deus queira… fim do isolamento social. Calma! Não é bem assim, vamos formar um grupo pequeno, só com os mais chegados, e nada de abraço apertado e beijo molhado.

Que tal assar um peru-pequeno? Crio um grupo. Nada melhor que várias cabeças pensando. Democracia é assim, ou deveria ser. Todos concordam. Afinal, estavam esperando que alguém se pronunciasse! E vamos nos animando, falamos da ceia, do cardápio para acompanhar o peru, do vinho em promoção, da sobremesa com leite condensado e, e, e, de repente, alguém joga uma luz: já que chegamos até aqui, que tal organizar o amigo secreto?

Momentos de silêncio, e vem uma resposta tímida: é… podemos fazer… estipular um valor que não pese pra ninguém. De repente, todos concordam de novo. Era isso que estava faltando: um presente, mesmo que não seja um preseeeeeeeeente. E vem o valor: cinquenta reais? Sim. ok, cinquenta reais. Viva, vamos ganhar um presente. Vamos ter Natal. Sorteados os nomes, parece tudo resolvido, mas já vejo um sinal de preocupação na testa de todos os integrantes do grupo: o quê comprar com esse valor? Nada que as páginas dos Apps e as vitrines nos mostram. Aí… como tudo que não tem solução já está solucionado, “é melhor aceitar aquilo que não podemos mudar.” Quem sabe no Natal que vem o amigo não seja tão secreto assim e eu possa abrir uma caixinha e me deparar com aqueles brincos de prata e pedra azul turquesa que custam mais, muito mais que cinquenta reais? Ou, melhor que os brincos de prata, bem melhor: quem sabe todos os brasileiros tenham o que comer durante muitos e muitos anos, direito à saúde à educação, moradia e dignidade? Isso tudo vai passar, gente! Vai passar! Ou não, né? Quem sabe!? Depende..

Falando em secreto, me lembrei do voto. É secreto, né? Pois, é.

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

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