EaD e formação na área da saúde

Em maio de 2017, o decreto federal 9.067/2017 que regulamenta a educação a distância no ensino superior foi editado, passou pela comissão de aprovação e entrou em vigor, flexibilizando a abertura de cursos em EaD, principalmente de graduações na área saúde, além de permitir a criação de curso mesmo em instituição onde não haja a mesma disciplina na modalidade presencial. Sendo assim qualquer instituição pode credenciar um novo curso em sua grade, mesmo que nunca o tenha ofertado de forma presencialmente antes.

De início, sinceramente não me preocupei com a notícia, e até esqueci dela, pensando que não haveria adesão a tais cursos, ainda mais na área da saúde, porém eu estava errada, muito errada, para minha decepção. Vendo alguns burburinhos em redes sociais, grupos de amizade, resolvi procurar mais sobre o assunto e realmente me surpreendi, de uma forma nada agradável.

Desde a aprovação desta edição, o número de adesão a tais cursos na formação de profissionais de saúde mais do que dobrou. Em fevereiro, antes da aprovação, eram 274 mil vagas, em setembro, esse número subiu para 521 mil vagas, e a previsão para este ano de 2018 é triplicar a adesão a estes cursos.

Como se isto já não bastasse, além do aumento de EaD, o número de vagas preenchidas presenciais caiu em mais de 25% ao longo do ano, relacionando-se a facilidade de cursar-se a distância cursos como assistência social, biologia, biomedicina, educação física, enfermagem, farmácia, fisioterapia, fonoaudiologia, nutrição e terapia ocupacional.

Esta medida foi tomada, visando a ampliação de adesão ao ensino superior, capacitando e visando mão de obra “qualificada”, porém mais uma vez, o Governo Federal, por intermédio do MEC, decide uma questão delicada, sem ao menos discutir com os movimentos sociais. Há uma divergência entre as posições dos Ministros da Saúde e da Educação, que no caso, apenas o da Educação foi consultado para tal resolução entrar em vigor.

Em nota, o MEC defende o porquê:

“Independentemente da modalidade escolhida na graduação (presencial ou EAD), o aluno deverá cumprir as obrigações curriculares exigidas pelo MEC. Por exemplo, no Bacharelado em Enfermagem, o aluno deverá cumprir o estágio obrigatório em hospitais, clínicas e/ou Unidades Básicas de Saúde (UBS) com a supervisão de um professor enfermeiro. Quem ouve a expressão “100% EAD” pensa que o aluno fará até estágio pelo computador, mas não é assim. Está prevista a integração de práticas presenciais no currículo.

Entretanto mesmo com esta série de pré-requisitos a serem obedecidos, sabe-se que tais exigências não vem sendo cumpridas, e que apenas elas não são o suficiente para assegurar uma qualidade de ensino adequada para formar profissionais capacitados e aptos a realizarem suas profissões. Além disto alguns destes requisitos, pensando apenas em formar o máximo de pessoas, correm o risco de serem abolidas por decisão do MED e da Educação Brasileira, piorando ainda mais o processo de formação.

O mercado nacional está saturado de profissionais formados. Claro que há diferencias regionais, mas com o oferecimento de tais cursos, além de uma mão de obra possivelmente deficitária, não haverá espaços profissionais para todos atuarem.

No início do ano, a criação de um curso de Medicina Veterinária a distância teve forte repercussão negativa, por consciência dos estudantes de que não seria possível aprender através de telas de computadores, chegando ao ponto de a Unifacvest, de Lages (SC), cancelar o oferecimento do curso.

Ao todo, são 14 categorias profissionais de saúde de nível superior reconhecidas pelo Conselho Nacional de Saúde (CNS): assistentes sociais, biólogos, biomédicos, profissionais de educação física, enfermeiros, farmacêuticos, fisioterapeutas, fonoaudiólogos, médicos, médicos veterinários, nutricionistas, odontólogos, psicólogos e terapeutas ocupacionais, e destas 14, apenas medicina, medicina veterinária, odontologia e psicologia não tiveram cursos a distância abertos.

É claro que neste momento, nestes anos tecnológicos, a tecnologia precisa ser uma aliada no processo de educação, contribuindo no processo de aprendizagem, substituindo forma consideradas “desumanas” na área de aprender na saúde, porém há de se haver cuidado e saber como usá-la.

Competências como habilidades cirúrgicas, exames clínicos nos pacientes e avaliações, interação e contato humano não podem ser transmitidas apenas por aprendizado virtual, pois se há este relacionamento no processo de aprendizagem, como ele acontecerá no processo de cuidado do outro?

Pensando na formação de docentes, tem-se também a barreira na formação de professores capacitados a realizar educação a distância, no qual exige um tempo maior e uma dinâmica de aula muito distanciada do modelo tradicional de ensino de caráter transmissivo.

Um professor, por vídeo aulas, consegue dar aula pra mais de mil alunos e responder e-mails com eventuais dúvidas, pois como é virtual, ele tem controle de seu tempo e responde como puder, quando puder, porém um professor não é capaz de ser supervisor de mil alunos. O número excessivo de estagiários por supervisor de campo inviabiliza a articulação dos estágios com supervisão acadêmica e de campo. A supervisão e orientação para os estudantes passam a ser no máximo transmissão de informações, mas jamais formação profissional.

A formação deve ser permeada pela integração do ensino, serviço e comunidade, deve ser experiência nos diversos cenários e espaços de vivências e práticas. Há de se ter contato, interação, experiência. É na pratica que você conhece as falhas que ficaram na teoria, como e de que forma aplicá-la e quais seus limites e determinações.

Fico me perguntando de que forma conseguiremos alcançar o modelo de formação biopsicossocial que tanto nos é ensinado, pelo menos em minha graduação sempre foi muito falado e exigido. Como que alcançaremos a humanização em nossos atendimentos lembrando que quem atendemos é um ser humano, é alguém como nós, que merece cuidado, respeito e carinho, saindo daquele modelo biológico e mecanicista que sempre foi utilizado.

Não consigo compreender de que forma a sensibilidade, o cuidado, o zelo pelo outro pode ser passado apenas por aulas. Atrevo-me a dizer que a teoria é a parte mais simples e fácil no processo da graduação, pois é na prática que conseguimos vislumbrar o quanto é que aquilo faz ou não sentido, e a importância do nosso estudo, potencial e emprenho em ajudar o outro.

É somente na prática que conseguimos ver o real significado de cada coisa pra cada um. É na pratica que conseguimos perceber que há sim uma transferência e uma contratransferência no processo terapêutico, seja ele qual for. É nela que percebemos a importância do setting e da vinculação positiva. É com ela que entendemos que o paciente que sofreu uma amputação sente dor no seu membro sim, e aquela dor é real e apavorante.

É somente com ela que vivenciamos a dor de uma mãe que teve seu bebê e ele nasceu com um problema, pais que estão com seus filhos hospitalizados e não conseguem conciliar as tarefas básicas, que você compreende que o processo depressivo é mais doloroso que qualquer livro possa te explicar, que um transtorno de personalidade, que a pessoa que o tem é humana, independente de todas as especificações de um CID ou DSM.

Sinceramente?! Não é nada fácil lidar com tudo isto, é necessário domínio de teoria, humanização, amparo por trás de cada etapa, cada passo, com supervisores competentes que dão conta do paciente e de você mesmo. E estas são apenas as pequenas coisas na minha área, a Psicologia, imagine quais tantas outras coisas não acontecem nas demais disciplinas?

É por esses e tantos outros motivos que não acreditei de início que uma graduação a distância nesta área seria possível, nem tão pouco que haveria tanta adesão e desistências nas presenciais, e deixo aqui minha preocupação com a qualidade que haverá nessa formação a distância e se será possível apreender desta forma.

 

Yasmin Paciulo Capato

Yasmin Paciulo Capato é Psicóloga (CRP: 06 / 136448) clínica e atende as especialidade de Psicoterapia, Orientação Vocacional e Psicodiagnóstico na Clínica Vitalli.

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