Morte sem documento

Morreu de fome, de crack e de frio. Ali, na calçada, no chão, sem último desejo, sem extrema unção. Um longo suspiro na manhã de segunda-feira, à luz da manhã gelada, interrompendo os passos de pedestres aflitos, sob o olhar assustado do amigo. Morreu sem esperar pela democracia, oprimido por uma dor aguda no estômago e gelo nos ossos, enfeiando o trajeto de pessoas aflitas e apressadas.

Pouco a pouco, um pequeno ajuntamento foi se formando, os carros diminuindo a velocidade, cabeças para fora… curiosidade aguçada. Alguém telefonou chamando os representantes do Estado para levarem aquele corpo que um dia foi um homem. Agora, um corpo. Só um corpo coberto pelo mesmo trapo sujo que lhe servira de abrigo e agora escondia o rosto encovado, os olhos abertos sem acusações, sem perguntas, sem ódio, sem amor… sem nada.

– Estava doente? Usava crack?  Não tinha família?

Perguntinhas descabidas que o amigo respondia ao caso, sem saber o que dizer.

Sim, não, qualquer resposta surda, olhos perdidos em seu próprio futuro.

Da porta, o dono da padaria olhava – um olho lá fora no corpo mal cheiroso, outro lá dentro na vitrine de bolos perfumados.

– Ajudar é pior, isso é responsabilidade do Estado, disse alguém.

Chegou o repórter. – Foi crime? – pergunta.

O amigo conta uma história confusa, sem roteiro, ele mesmo com fome crônica.

Sim, foi crime. Um crime lento e cruel praticado pela omissão e pela indiferença.

– Eram amigos há muito tempo?

Não, não se conheciam há muito tempo, não eram parentes… era recente a amizade. Dividiam espaço sob um viaduto e também as sobras que vez ou outra ganhavam de uma alma piedosa; uma banana, um pedaço de sanduíche…

  O nome dele?

  Sabe… eu chamava ele de Zé… devia ser José.

Um cachorrinho bem nutrido esticou o focinho em direção ao corpo, logo contido pela coleira que sua dona puxou apressada.

– E a polícia não vem?

O sol fraco começando a aquecer a manhã e o repórter anotando.

– Não foi falta de comida, não – disse o amigo, segurando uma sacolinha magra – Aqui ainda tem dois pedaços de pão… – os olhos estreitos, vacilantes como a pedir desculpas por tanto incômodo.

Silêncio. Chegou o Estado. Homens fardados vieram com a segurança de quem pertence a um setor competente, abriram caminho entre as caras piedosas e levaram o corpo que foi sem adeus, num carro grande e escuro. Mais alguns comentários e a curiosidade foi se dispersando entre críticas ao desemprego, inflação, governo, corrupção…

Eximidos de qualquer compromisso ou culpa, cada qual retomou seu caminho interrompido pela última cena do terceiro ato de uma peça anônima. O amigo ficou esquecido, parado sem saber que rumo tomar. Enrolou o pedaço de cobertor deixado no chão pelos homens competentes, agarrou a sacola magra, avistou ainda, com uma lágrima seca, o carro escuro se perdendo ao longe e esperou o sinal abrir.

Matilde Leone

Maria Matilde Leone é jornalista e escritora, formada pela Faculdade Cásper Líbero, em São Paulo, SP, em 1985. Trabalhou em diversos veículos de imprensa como redatora e editora, tais como jornais, revistas e de televisão como EPTV, afiliada da Rede Globo. Foi docente de jornalismo na UNICOC em Ribeirão Preto e na Unifran, na cidade de Franca. É autora de Sombras da Repressão, o Outono de Maurina Borges, publicado pela Editora Vozes; A Caixinha do Nada, editora Coruja, Theatro Pedro II – 80 anos, editora Vide. Editora e revisora de várias publicações.

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